quinta-feira, 13 de outubro de 2022

por Matilde Castanho

 «Enviei mensagem à Inês a dizer “Olha, estava a pensar criar um clube do livro, mas acho que é trabalho para duas pessoas, o que achas?” e ela aceitou na hora».

Assim surgiu o The Characters Club, um clube do livro digital fundado em 2022 por Inês Mota e Carolina Nelas. Com uma presença magnética nas redes sociais e existência de salas de discussão sujeitas a uma lista de espera de mais de 6 meses, o TCC assume-se como um clube de leitura diferente daquele a que estamos habituados a conhecer no universo digital. A sua essência familiar e intimista marca o ritmo para um dos próximos grandes sucessos nas comunidades literárias portuguesas.

Conversámos com a Carolina e com a Inês, de forma a conhecer melhor o seu novo projeto.


Como é que surgiu a ideia de formar um clube de leitura e porquê fazê-lo juntas?

Inês: Foi uma belíssima coincidência (risos). Eu tinha como objetivo de início do ano, ou aderir a um clube do livro que fizesse sentido para mim, ou criar um. Relativamente à primeira opção, nunca me senti como um membro de um clube naqueles que experimentei e, portanto, teria de começar o meu. Seria para começar no segundo trimestre do ano e pensei logo que, para fazer sentido e pela exigência, teria de ter outra pessoa envolvida – pensei na Carolina, ainda estava o projeto no papel. Quando ia começar o clube, tive um trimestre péssimo e achei “talvez não estivesse destinado”, “não é, de todo, a altura certa” e deixei o projeto na gaveta.

Carolina: Eu, não tendo uma história de hábitos de leitura e sendo muito diferente da Inês nesse aspeto, de há uns anos para cá comecei a ler muito mais e, neste verão senti que mais gente também o estava a fazer. Via mais gente com livros, kindles, kobos… em vez de estarem no telemóvel. E tinha esta ideia guardada, mas nessa altura era apenas uma ideia, até eu assumir “não, é agora!”. Mandei mensagem à Inês a dizer que estava a pensar fazer aquilo, mas achava ser trabalho para duas pessoas. Ela aceitou na hora e descobrimos que tínhamos ideias semelhantes a título de conceitos – pretendíamos algo mais familiar, íntimo e, ao mesmo tempo, algo diferente que precisámos de descobrir o que seria. Quanto mais fomos falando, mais percebemos estar em sintonia.

Como funciona a dinâmica do The Characters Club?

Inês: Aquilo que nós tentamos que aconteça é: criar aquilo que gostávamos de ter encontrado. Tentamos preservar o ambiente familiar que existe e que nos dá a sensação de estarmos mesmo num clube. Eu conheço os membros do TCB e eles também se conhecem entre si, essa dinâmica é diferenciadora em relação a outros clubes, que se assemelham mais a um fórum de entusiastas de leitura – e tudo bem, se for isso que estão à procura!

Nós temos a dinâmica de discussões de sala, através do Discord, sobre o livro escolhido. No final de cada mês fazemos uma discussão aberta, onde podemos falar com spoilers, podemos dar a nossa apreciação, etc… Depois, existe também uma sala mais livre, onde as conversas são aleatórias, toda a gente fala daquilo que quiser, há sugestões, recomendações, apresentações. Acaba por ser onde os membros se conectam uns com os outros.

Carolina: Nesse aspeto, o facto de nós abrirmos novas vagas no início do mês contribui para essa dinâmica, ou seja, não há pessoas constantemente a entrar. Entram pessoas novas no início do mês e têm o seu momento para se apresentarem e criarem ligações.

Para quem ainda não conseguiu uma vaga, porque temos uma lista de espera que preserva esta familiaridade, temos a dinâmica que oferecemos através do Instagram – lá revelamos o livro, promovemos interações com perguntas, sugestões e conteúdos diversos. Deste modo, as pessoas que preferem este ambiente mais geral, têm esta opção. Assim, conseguimos abranger estes dois tipos diferentes de público.

Como é o processo de escolha do livro do mês?

Inês: Começando pelo processo de escolha do livro – para já, aquilo que tem resultado para nós é, alternadamente, cada uma faz uma sugestão, sendo que nunca escolhemos prosseguir com um livro que não tenhamos ambas lido.

Carolina: Até agora ainda não aconteceu, mas, por exemplo, eu não vou sugerir um livro que a Inês detestou. Nesse caso, avançamos com outra proposta. De facto, temos de ter lido as duas – e nós temos experiências de leitura muito diferentes -, mas pensamos sempre que seja um livro que…

Inês: … tenhamos as duas gostado, ou com um padrão mínimo de qualidade para as duas, para também pudermos sugerir a leitura com propriedade! (risos)

Carolina: Ou até um que consigamos reconhecer que “ok, eu não gostei, mas consigo perceber porque é que as pessoas gostam”. Tentamos também trazer temas e estilos diferentes, apesar de ainda só estarmos no terceiro mês de clube de leitura, essa diversidade é bastante importante.


O vosso Instagram é uma ferramenta muito central, como organizam o trabalho feito e partilhado através dessa plataforma?

Inês: Nós trabalhamos à distância, logo toda a gestão do projeto é remota. Para já, tem funcionado bastante bem, porque a meu ver ambas temos princípios e formas de organização minimamente alinhados. Os conteúdos são discutidos entre as duas, temos uma base de dados onde vamos trabalhando colaborativamente. Vamos deixando sugestões, comentários, calendarizações, tudo aquilo que seja necessário. A ideia é termos um espaço centralizado onde possamos trabalhar todo o conteúdo e ter uma ponte para ver o que já está feito e o que falta fazer.

Carolina: Tanto eu, como a Inês trabalhamos em Marketing, por isso já temos ritmos muito automatizados e até alguns vícios de profissão. Trabalhamos com calendários editoriais, feitos com bastante antecedência, para garantirmos que a qualidade que pretendemos se mantém independentemente dos nossos horários. Há rúbricas que temos – como as playlists, o casting – que sabemos que vamos incluir, pelo menos nesta fase, então acaba por ser bastante mecânico aquilo que cada uma faz. Em seguida, surge o espaço para outras publicações e conteúdos não-planeados, que também marcam a nossa dinâmica.

Sendo que há alguns bookstagrams e clubes de leitura nas redes sociais, pensaram numa forma de se destacarem dos restantes?

Carolina: Nós queríamos que este clube do livro não fosse só sobre livros, que também misturasse algumas paixões que nós também temos – as viagens através de bibliotecas e livrarias, a moda, a música (as nossas playlists que têm o cunho pessoal da Inês, que já tinha o hábito de as criar para si mesma). Acaba por ser este complemento de personalidade que traz conteúdo mais diferente e mais completo e não tão limitado apenas à leitura.

Inês: Aquilo que nos ajuda é que, como o nosso foco é ter um clube no qual orbitam coisas incríveis, como uma conta de Instagram e outras plataformas onde podemos falar sobre livros, sobre nós e sobre os nossos gostos, isso faz-nos ser mais diferenciadoras nos conteúdos.


Como tem sido o feedback?

Carolina: O número de pessoas na lista de espera não para de crescer e é tão assustador, como incrível!

Inês: Fico sempre arrepiada quando vou espreitar o nosso formulário! Deixa-me mesmo entusiasmada e ao mesmo tempo penso “será que estamos à altura para receber tanta gente?”.

Pessoalmente, já recebi algum feedback dos membros do clube, a que peço para que sejam mesmo honestos e digam aquilo de que sentem falta, para que possamos evoluir! Tenho ouvido aquilo que eu mais queria ouvir. Dizem-me que sentem que fazem parte de uma experiência, que os pormenores com que os recebemos e envolvemos têm resultado muito bem.

Carolina: Reparo que, quando as pessoas falam entre si e recomendam um autor, ou um livro, não existem julgamentos. Surgiu, há uns tempos, uma discussão sobre uma autora que uns adoravam e outros não eram admiradores e ambos os lados diziam gostar de ter um espaço para falar livremente sobre as suas opiniões. É ótimo existir uma comunidade onde as pessoas estão confortáveis e à vontade, porque estamos apenas a falar de livros.

Acham que os clubes de leitura têm a capacidade de tornar a leitura numa tendência?

Inês: Para mim, em geral, entusiasmam-me muito estas iniciativas. Mesmo que existam outros clubes, com os quais eu não me identifiquei, é incrível saber que existem clubes literários em Portugal com várias iniciativas e milhares de membros. Acaba por ser trazer os livros de volta ao quotidiano e ao entretenimento e encaixá-los numa realidade que é digital. Move este poder das histórias até um contexto muito atual e acho isso fascinante, porque sou leitora desde miúda e, para mim, os livros nunca perderam a magia.

Carolina: Apesar de concordar, tenho também outra perspetiva: neste momento, acho que, em Portugal, quem pertence a estes grupos são pessoas que já gostavam de ler, ou já tinham hábitos de leitura. Acho que, a longo prazo (ou médio prazo), será possível trazer a leitura para os mais jovens e para aqueles que não têm hábitos de leitura. Por isso é que nós também, apesar de termos um livro do mês, fazemos mais sugestões. No entanto, para quem não lia nada, se agora lê um livro por mês, já é um progresso extraordinário. Acho que Portugal está, ainda, um pouco obsoleto a nível literário e editorial e nestas plataformas estamos a chegar a pessoas que já estavam neste universo. Mas funciona como incentivo para as restantes? Sem dúvida.

 


terça-feira, 4 de outubro de 2022

 por Matilde Castanho 

“Como não comi hidratos de carbono, nem açúcar durante três semanas, vamos fazer uma festa com pizza e donuts no hotel”, afirma Kim Kardashian, uma das celebridades mais seguidas do mundo, após confessar, na passadeira vermelha da MET Gala, ter perdido aproximadamente 7 quilos em três semanas.

A confissão gerou, quase instantaneamente, polémica nas redes sociais, criando espaço para a abertura de uma discussão sobre a cultura da dieta, os seus principais impulsionadores e as origens dos padrões de beleza vigentes atualmente.


O que é a Cultura da Dieta?

A “cultura da dieta” está definida como sendo um conjunto de crenças e valores que priorizam a magreza, aparência e forma acima da saúde e bem-estar. Estando assente sobretudo em práticas de restrição alimentar, assume-se como uma cultura dominante no ocidente, moldando a maneira como a generalidade observa e avalia conceitos relacionados com a beleza e sendo a principal influente nas rotinas íntimas e pessoais de cada um.

A sua participação sistémica na sociedade fez com que se manifeste diariamente através de todos os canais de comunicação disponíveis, quer seja através dos media, ou em interações pessoais, e abriu caminho para a criação de uma indústria (de redução de peso) avaliada em cerca de oitenta biliões de dólares, em 2022.

Apesar de, na sua génese, as dietas terem sido concebidas com vista num público masculino – estando um dos primeiros registos de uma dieta líquida ligado a William, o Conquistador (1028) – são, atualmente, percecionadas como uma ferramenta do patriarcado, “Mulheres, entre as fases da adolescência e idade adulta são o grupo com maior sentimento de “pressão em atingir x padrão”, logo são consequentemente o grupo que mais sofre com este assunto. Existem vários motivos pelos quais este grupo sofre mais deste “fenómeno”, um deles vem da necessidade de agradar aos outros para sobreviver/garantir uma boa qualidade de vida”, explica Daniela Mendes, psicóloga.

A passagem da beleza de uma característica natural para algo que pode ser adquirido, comprado ou produzido, foi uma ideia que ganhou cada vez mais repercussão com a democratização dos média e surgimento da internet e redes sociais. Estes novos meios de comunicação, que possibilitam a manipulação de (auto)imagens, criam padrões estéticos e fundam padrões corporais, que, de acordo com Daniela “muitas vezes geram admiração e desejo em querer a eles pertencer. Aí surge também a comparação e o tentar fazer o que está ao alcance para poder alcançá-los: mudamos a nossa vida em função de chegar a um padrão que muitas vezes é impossível, investimos tempo, dinheiro, esforço e atenção em tentar chegar a esse “padrão” ou pelo menos aproximarmo-nos dele, e, quando percebemos que não será possível pode surgir a baixa autoestima, a ansiedade, a depressão ou até, muitas vezes, os distúrbios alimentares”. Para Helena Trigueiro, nutricionista, “Existe um grande impacto social, da partilha de boca a boca e da aceitação nas redes sociais e internet - temos uma panóplia de escolhas de dietas absurdas e irresponsáveis disponível através do Google. A forma leviana como falamos da comida e das dietas no espaço digital acaba por não ajudar. Grande parte do nosso dia-a-dia é passado nestes espaços e, portanto, muito daquilo que nos influencia vem de lá. Não existir muita sanidade no digital no que diz respeito à alimentação e à cultura da dieta promove e valida este tipo de sentimentos”.

A par da pressão social assente numa imagem corporal específica perpetuada pelas comunidades digitais, a popularidade de produtos dietéticos e diuréticos já existentes (e a criação de novos) atingiu um novo pico. “Como o Instagram tornou os laxantes fixes”, escreve Gray Chapman, na Elemental, de forma a alertar os leitores da revista médica para as consequências da utilização de laxantes e produtos detox como métodos de perder peso.

A realidade é que novas companhias de chás detox, laxantes e “vitaminas” dietéticas surgiram no mercado, conquistando uma audiência de milhões e colocando a geração millenial como uma das maiores vítimas dos seus produtos. “Podemos começar pelo propósito da coisa: o objetivo da pessoa deve ser aprender a comer de uma forma que a faça feliz, que seja nutricionalmente adequada e que faça sentido. Se esse é o objetivo a longo prazo, é pouco provável que isso seja atingido com solução de “penso rápido”. Dietas líquidas e laxantes não são soluções e criam uma ideia de que a pessoa consegue ser saudável se tiver este tipo de muletas. E essas muletas têm consequências muito graves no que diz respeito ao descontrolo da digestão de lípidos, da desregulação intestinal. Ninguém vai sobreviver com dietas líquidas e ser feliz.”, continua Helena.


Consequências

Diariamente, somos confrontados com novos métodos e técnicas de redução de peso. Quer seja a adoção de uma rotina de exercício radical, a eliminação de hidratos de carbono da nossa alimentação, ou a prática de jejuns e longos períodos sem ingestão de alimentos, todos estes mitos chegam até nós por múltiplas vias. Para Helena Trigueiro, “Ainda há um fosso bastante grande entre práticas responsáveis e aquilo que ainda é tido como normal. De facto, aquilo que se vê muitas vezes são períodos de restrição excessivos e muito acentuados, que depois se transformam em hábitos de vida crónicos. O que acabamos por perceber é que existem pessoas que estão constantemente em restrição, nunca saem de um estilo de vida de dieta, culpa e proibição”, ilustra a nutricionista, antes de acrescentar, “Eu diria que ainda estamos muito desligados daquilo que são as doenças de comportamento alimentar. Não percebemos a prevalência, ainda não estamos capacitados para saber lidar com elas e isso faz com que a procura de tratamento seja mais difícil”.

Em resposta às necessidades dos seus utilizadores e exigências de organizações de saúde, também os responsáveis pelas redes sociais são cada vez mais pressionados a tomar uma posição legal no que toca à promoção e venda de itens dietéticos nas suas plataformas. “Normalizámos a venda do absurdo a públicos de jovens impressionáveis”, comenta a atriz Jameela Jamil, impulsionadora de um movimento que resultou no aumento de restrições à venda de produtos da indústria da perda de peso, implementado pela Meta. Ativistas e associações com relevância no setor classificam essa alteração nas políticas de utilização das plataformas como um passo na direção certa, mas deixam claro que é preciso seguirem-se medidas legislativas nos diferentes países.

Os dados recolhidos pela Associação Nacional da Anorexia Nervosa e Doenças Associadas (ANAD) apontam para que 9% da população mundial sofra de um distúrbio alimentar, sendo que o maior setor demográfico a manifestar sinais destas patologias diz respeito às mulheres jovens. Daniela Mendes realça também que “Não existem propriamente gatilhos que despertem ou façam surgir uma perturbação psicológica relacionada com a aparência física, existem sim fatores que podem contribuir para o desenvolvimento das mesmas (fatores de risco) , vários estudos falam por exemplo na interiorização de ideais socioculturais de beleza, na relação com a comida, na relação de vinculação com a mãe, no bullying, nos ambientes familiares com características como baixa comunicação, no espaço para expressão, na gestão emocional, e nos ambientes autoritários e rígidos”.

Os distúrbios alimentares são, atualmente, as perturbações psicológicas com a taxa de mortalidade mais elevada. A possibilidade tratamento e cura existe, mas fatores como a falta de diagnóstico (ou o diagnóstico tardio) e a pouca informação científica disponível dificultam o processo. “É (um processo) bastante construtivo, muito mais lento, onde acabamos por valorizar as pequenas e grandes conquistas. O papel da nutricionista, em conjunto com outros profissionais de saúde, passa pela visão da pessoa sobre a comida e a forma como ela se alimenta e o quer fazer. Visa a reconciliação com a comida. Essa construção e reabilitação alimentar é o cerne da questão”, confessa Helena Trigueiro, quando questionada sobre os métodos de tratamento.

A prevenção e atenção continua a ser a maior recomendação dos profissionais de saúde, reforçando que, apesar de uma grande variedade de perturbações da alimentação, existem alertas e sinais que devemos ter em mente, estando eles relacionados com os hábitos alimentares, o peso, a imagem corporal e o isolamento social. “Entre comer demasiado num curto período ou evitar comer, alimentar-se com menos do que o corpo precisa, alimentar-se de substâncias que não são alimentares, contar e calcular excessivamente as calorias de cada alimento, dietas rigorosas; Atingir excesso de peso ou um peso muito abaixo do considerado saudável num curto período, preocupação excessiva com o peso, medo de ganhar peso; Preocupação excessiva com a sua aparência/imagem corporal, distorções de imagem corporal – a pessoa vê o seu corpo de forma diferente do que os outros vêm; Oscilações de humor, indução de vómitos, exercício físico excessivo” enumera Daniela.

“Há muito que podemos fazer, tanto por nós mesmos como recorrendo a profissionais, para corrigir a nossa perceção de beleza. Podemos começar, por exemplo, com a psicoeducação sobre o tema, trabalhar o nosso autoconhecimento, a nossa autoestima, a nossa autoaceitação, (…) estabelecer hábitos de autocuidado, trabalhar o nosso discurso interno (o que pensamentos e dizemos a nós próprios) para baixarmos a nossa autocritica pode também ser muito bom, no fundo todos sabemos que temos características muito diferentes uns dos outros e que a beleza é relativa".

terça-feira, 28 de junho de 2022

por Matilde Castanho

Ricardo Reis caminha sobre a calçada portuguesa, percorrendo a mesma Lisboa que, dois séculos antes, viu nascer o amor de Blimunda e Baltasar. Cumprimenta, com um breve aceno do chapéu, o velho senhor que intercepta o seu caminho, sem saber que diante de si está Carlos da Maia, outrora um jovem destroçado.

A paisagem que o seu olhar alcança revela-lhe o oceano de onde os portugueses haviam, um dia, partido, preparados para serem imortalizados como heróis de uma epopeia. Contemplando o cenário, pergunta-se se os peixes daquelas águas ainda se recordam das palavras que Santo António lhes dedicou.

Numa sala de aula distante, os livros estão abertos e os protagonistas preparam-se para contar as suas histórias a uma nova geração de estudantes portugueses. Todavia, a questão que se levanta permanece intocável há décadas: onde estão as autoras portuguesas e porque é que não têm lugar nos programas curriculares?


Os Programas e Metas Curriculares elaborados tendo em conta os objetivos de aprendizagem relativos à disciplina de Português – que acompanha os jovens desde o seu primeiro ano de escolaridade até ao 12º - propõem parâmetros pedagógicos específicos no que diz respeito às áreas da oralidade, gramática, escrita e educação literária.

Para além das avaliações obtidas em regime de frequência, os estudantes portugueses são também submetidos às classificações de quatro provas nacionais distintas, durante o seu percurso académico, sendo elas as provas de aferição, no 2º e 8º ano, e os exames nacionais realizados no 9º e 12º.

Na sua totalidade, são nomeados cento e dezoito autores no decorrer da Lista de Obras e Textos que direciona e orienta o padrão referente à leitura. Nomes como Camilo Castelo Branco, José Saramago, Fernando Pessoa e Eça de Queiróz são mencionados frequentemente, devido à sua contribuição e relevância no setor literário português, sendo importante ter em consideração que “os programas escolares e a sua lecionação são a mais importante forma de institucionalização da literatura e da elaboração de uma espécie de cânone de autores clássicos – que são considerados clássicos justamente porque são dados na classe – que são de leitura aconselhada ou obrigatória em vários graus de ensino”, como explica Ana Luísa Vilela, professora na Universidade de Évora, doutorada em Literatura Portuguesa.

Por outro lado, apenas vinte e quatro escritoras do sexo feminino são referenciadas nestes mesmos programas curriculares, o que corresponde somente a 20% do total. Sophia de Mello Breyner e Alice Vieira apresentam uma maior presença, seguidas de Matilde Rosa Araújo, Luísa Ducla Soares, Maria Alberta Menéres e Luísa Dacosta. “Eu lembro-me de chegar à secundária e pensar nessa desigualdade, porque sempre me senti mais atraída por literatura de autoria feminina e tinha de a procurar fora das propostas que surgiam na escola. É triste, enquanto estudantes e mulheres portuguesas, não termos alguém [no programa curricular] com quem nos possamos identificar e que nos possa representar [no mundo literário], confessa Beatriz Lopes ao recordar a sua experiência enquanto aluna de Português.

A ausência de obras de literatura feminina de referência nos currículos da disciplina pode ser explicada por várias razões, entre as quais a distribuição e organização da sociedade portuguesa até ao século XX – que afastava as mulheres do exercício da arte e cultura –; e a existência de critérios patriarcais e obsoletos (conscientes ou não) no processo de seleção e escolha.

“É evidente que a autoria feminina existiu desde sempre, mas também é evidente que a sociedade portuguesa foi – e ainda é – regida por um sistema patriarcal. Isso implica que quem estabelece o cânone privilegie as obras daqueles que têm mais acesso à cultura e com quem se identificam mais. E quem tem mais acesso à cultura, quem sempre teve mais acesso à cultura, foram os homens”, afirma Ana Luísa Vilela, continuando “tanto quem diz que os programas são feitos à luz de uma ideologia patriarcal e tradicionalista, como quem diz que as mulheres não tiveram acesso à cultura, tem razão. Da Idade Moderna para cá, as mulheres mais cultas eram aquelas que estavam livres da tutela masculina, ou por pertencerem ao clero, ou por serem viúvas”.

Para Ana Cabete, professora do Ensino Secundário, “A prevalência de autores masculinos europeus de pele clara reflete a realidade histórica da Europa e, sobretudo, do nosso país. Até ao 25 de Abril de 1974, a larga maioria da população portuguesa era analfabeta, excluindo-se deste analfabetismo sistémico os homens brancos pertencentes a famílias financeiramente privilegiadas. Neste contexto, é natural que a maioria dos autores até ao século XX, selecionados para o programa de Português, sigam este padrão. Já não considero tão consensual a escolha de autores homens e brancos dentro do cânone do século XX e XXI. Por exemplo, a poesia portuguesa atual é escrita maioritariamente por mulheres e esse facto ainda não se reflete nos manuais escolares. O mesmo sucede com as obras escritas por minorias. Como explicar este facto? Conservadorismo e inércia, talvez. Mudar um padrão é um processo lento e moroso”.


Movimentos literários e temas recorrentes nas obras

Várias escolas literárias estão representadas nos programas curriculares. A Era Medieval marca a sua presença através da poesia trovadoresca, dos relatos de Fernão Lopes sobre a vida na Corte portuguesa e das sátiras de Gil Vicente. O período Clássico é estudado em Luís de Camões (Classicismo) e Padre António Vieira (Barroco); e a Era Moderna tem como embaixadores Alexandre Herculano, Almeida Garret e Camilo Castelo Branco, inseridos no movimento do Romantismo, Eça de Queiróz enquanto representante do Realismo, e Fernando Pessoa como cara principal do Modernismo.

A forma como o programa está organizado, apesar de ser lógica e em sequência, relega os escritores atuais para as últimas aulas do ano letivo, quando professores e alunos já estão menos disponíveis e pressionados pelo cumprimento do programa. A este propósito, é óbvio que os programas são de uma ambição desmedida e paralisante e não propiciam qualquer margem para a discussão de outras obras que não as inscritas no rígido cânone. Esse é um dos grandes problemas do ensino, hoje em dia”, reflete Ana Cabete, defendendo que considera que os escritores dos séculos XX e XXI se revelam excelentes oportunidades de partilha e mudança na sala de aula.

A nível de temáticas, é frequente (e quase exclusivo) a ação estar centrada nas classes mais altas das sociedades portuguesas das diferentes épocas. A perda do estatuto de leitura obrigatória d’O Memorial do Convento, por José Saramago, separou os alunos duma narrativa focada em personagens pertencentes ao povo – suas dinâmicas e problemáticas – e, a par com o afastamento de Felizmente Há Luar, por Luís de Sttau Monteiro, resultou na ausência de duas personalidades femininas de grande relevo e importância literária e cultural: Blimunda e Matilde de Melo. “As personagens femininas que nós encontramos ou são retratadas como bruxas, más, o fruto de todo o pecado – numa abordagem totalmente pejorativa -, ou então são personagem sem dimensão nenhuma, que aceitam as condições do seu destino e não procuram evoluir ao longo da história. E essas duas alternativas não servem. Dêem-nos algum crédito, deixem-nos saber as batalhas das nossas antepassadas, dêem-nos alguém para ler que nos vá inspirar a ser uma boa mulher”, propõe Beatriz.

Apesar da qualidade das obras selecionadas não estar em discussão, sabendo que estas são o resultado de um trabalho intelectual e literário de valor inestimável na construção da identidade e cultura portuguesa, a necessidade de ver retratados outros grupos sociais, outros heróis e outros géneros literários mais apelativos às gerações mais novas (como o thriller e a ficção científica) surge várias vezes em conversa. Para Ana Cabete “os escritores, homens brancos e privilegiados, escreviam sobre os conflitos existentes dentro da sua esfera de ação: a sociedade portuguesa era, de facto, estratificada e sem mobilidade social. Perpetua-se, assim, através da literatura, uma ideia equivocada do país e aumenta a distância entre o leitor e as problemáticas abordadas nos textos estudados”.

 

Falta de diversidade nos currículos e consequências

O domínio masculino (branco e heteronormativo) do programa curricular da disciplina de Português faz levantar, entre outras, a questão da representatividade na sala de aula. As realidades temporais distintas, aliadas ao privilégio sistémico de que os autores gozavam, torna frequente a existência de estereótipos e preconceitos nas páginas das obras em estudo.

Em 2021, a investigadora Vanusa Vera-Cruz Lima chamou à atenção para a existência de passagens de teor racista n’Os Maias, livro publicado em 1888, recomendando que a leitura em sala de aula devia, por isso, incluir um comentário de teor pedagógico que tenha como objetivo desconstruir e contextualizar os excertos em questão. “Nós devemos ler as obras tendo em atenção o contexto em que foram escritas, mas numa aula de adolescentes – ou pré-adolescentes – é difícil de explicar que não há reflexos de preconceitos, quando os há. Não podemos julgar o passado com os valores do presente, mas é evidente que devemos dizer aos alunos que estejam atentos. A arte deve ser observada com olhos estéticos: contextualizando-a, compreendendo-a e sabendo que o presente está mais adiantado que o passado e, por isso, podemos não ser censores, mas paternalistas”, defende Ana Luísa Vilela.

A representatividade é atualmente discutida em larga escala como sendo um fator essencial na educação dos jovens, com grandes companhias mediáticas a fazerem alterações nos seus conteúdos e colocarem avisos de gatilho quando certos limites são ultrapassados. No contexto educativo, essa missão recai sobre os professores, que trabalham em conjunto com os alunos para ultrapassar barreiras e combater discriminações, “discutir, questionar e problematizar são sempre as melhores estratégias até no sentido de aprendermos, todos, a não cometermos os mesmos erros do passado. Quando a representatividade não acontece naturalmente, penso que compete ao professor ter a sensibilidade de a provocar”, explica Ana Cabete.

Por outro lado, o caráter restrito e exclusivo dos programas curriculares pode resultar num desânimo por parte dos jovens face à literatura, para Beatriz Lopes, “quando eles escreveram as suas obras, o público-alvo eram as classes altas (maioritariamente, os homens), o que levanta a questão de ser preciso acrescentar novas obras que, desta vez, sejam dirigidas a nós. Nem precisam de ser obras recentes, em Portugal existiram muitas mulheres e muitas pessoas de cor a contar histórias partindo da sua perspetiva e isso não está retratado no currículo. Possivelmente, seriam leituras muito mais interessantes para a mente de um adolescente”.

Num país onde as estatísticas apontam para um número elevado de pessoas sem hábitos literários, a introdução de novos autores e novas temáticas poderia reverter esta tendência e abrir um caminho mais amplo e diversificado para o universo da literatura. “Penso que há abertura dos professores para rever os programas e tornar as coisas mais fáceis, tem de haver. Não sei se de quem faz os programas existe, mas de quem os aplica e faz a sua gestão creio que há”.

 

domingo, 1 de maio de 2022

 por Matilde Castanho

Vinte e quatro horas – o tempo necessário para que uma peça de roupa viral nas redes sociais seja recriada e adicionada aos produtos disponíveis no catálogo de uma loja de fast fashion, tornando-se na tendência em vigor, até ser substituída por um novo conceito nas vinte e quatro horas seguintes.

Atualmente apontados como sendo um dos conteúdos mais populares para os usuários, os vídeos identificados com #haul – onde os criadores de conteúdo exibem produtos e peças adquiridos numa determinada loja – acumulam mais de 15 biliões de visualizações na aplicação TikTok e contabilizam-se mais de 400 milhões de fotografias publicadas na plataforma Instagram com a designação #ootd (outfit of the day). 

A popularidade destes posts, aliada à resposta supersónica das marcas de moda ultrarrápida constituem a génese de um novo fenómeno na cultura da moda: a redução do ciclo de vida das microtendências; de 3 anos para 3 meses.



Estima-se que cerca de 60% da população mundial esteja presente nas redes sociais. O seu caráter interativo e o dinamismo que oferecem a indivíduos e entidades provocaram uma reestruturação social a diferentes níveis. As plataformas digitais são, atualmente, uma peça importante na política internacional, afetando diretamente também os setores da saúde, finanças e marketing, enquanto simultaneamente provocam mudanças profundas na perceção e análise cultural.

No setor têxtil, o domínio das redes sociais não só foi marcado pela presença de uma maioria esmagadora de marcas de moda nas diversas aplicações, mas também pela revolução do sistema de tendências, a que tanto produtores como consumidores estavam adaptados.

Se nas décadas anteriores, o surgimento de novos movimentos, ou modas era controlado e estabelecido por uma elite de editores, fotógrafos e estilistas, neste momento observa-se que os consumidores não atribuem o mesmo valor à validação destes profissionais da indústria da moda. A autonomia e irreverência das figuras por detrás dos blogs de moda (nas suas diferentes facetas e plataformas) tomou o controlo, reclamando para si a função de decretar o que se torna popular (ou não).

Assumindo este cenário, os influenciadores digitais possuem os critérios necessários para estabelecer e fomentar novas tendências: um acesso direto ao processo de produção das marcas e às fontes de inspiração dos designers; e uma legitimação obtida pelo seu número de seguidores, “a verdade é que, hoje em dia, uma marca que queira comunicar não pode passar sem influencers, quando provavelmente poderá passar sem anúncios em revistas de moda. É preciso que seja uma marca muito especial, com uma identidade muito própria, para conseguir obter sucesso sem presença nas redes sociais”, explica Margarida Brito Paes, jornalista de moda.

Este desaparecimento de hierarquias tão evidentes no universo da moda, transforma cada utilizador das redes sociais num potencial criador de tendências – como consequência, os consumidores esperam que as marcas estejam atentas à renovação dos ciclos e se reinventem constantemente, colocando novos produtos no mercado o mais rapidamente possível, e tenham a capacidade de prever futuras tendências. Carolina Nelas, especialista em Marketing e Comunicação, com experiência na área da moda, afirma, “tudo acontece mais rápido. Costumo dizer que trabalhar em marketing é uma lição de humildade porque estamos constantemente a errar. O que funcionava há dois meses pode não ter qualquer impacto hoje”.


Os ciclos de moda

Um “ciclo de moda” é o nome atribuído ao tempo de vida (leia-se, popularidade) de uma tendência. É um fenómeno composto por cinco fases distintas, sendo elas: a introdução, a ascensão, o auge, o declínio e a obsolescência.

O processo de introdução corresponde à apresentação de um novo estilo/ conceito e ocorre, na sua maioria, durante os lançamentos de coleções nas principais semanas da moda, ou nas aparições de celebridades, em eventos da elite, trajadas de alta-costura – de qualquer modo, está intrínseco a criações luxuosas de designers, ou grandes marcas, comercializadas em pequenas quantidades e a preços incomportáveis.

A ascensão acontece quando determinada tendência deixa de ser exclusiva e começa a despertar interesse no público geral, ganhando ainda mais cobertura mediática e sendo replicada por marcas com preços mais praticáveis. Margarida Brito Paes clarifica “O que acontecia era uma espécie de pirâmide – primeiro acontecia o desfile, seis meses depois os clientes de luxo começavam a utilizar essas propostas e só mais tarde é que o mercado de massas pegava nessas tendências e daí construía alternativas mais acessíveis. Isso tornava o ciclo muito mais longo”.

De seguida, o auge marca o ponto de saturação da tendência. Atualmente, uma tendência atinge esta condição com uma rapidez insustentável, pois os consumidores revelam-se entediados e insatisfeitos por utilizarem peças de roupa fabricadas com qualidade medíocre e semelhantes às de todos os que o rodeiam. Para Carolina, nos dias de hoje, as marcas de moda rápida contribuem para a intensificação deste processo, “produz-se em grandes quantidades para conseguir preços baixíssimos, aposta-se em produtos tendência e promove-se o consumo por impulso através de novidades semanais e descontos”.

Como consequência, dá-se o declínio, onde o conceito apresentado deixa de ser popular e desejado (por ter perdido o seu estatuto de único e prestigioso). Por fim, a obsolescência marca o momento em que a tendência deixa de ser observada e abandona o mercado – no entanto, devido à natureza cíclica da indústria da moda, a probabilidade da sua reintrodução é bastante alta.

A introdução das redes sociais e de novos intervenientes no processo de propagação de tendências, veio alterar a dinâmica destes ciclos. Em décadas anteriores ao estabelecimento geral destas plataformas na sociedade, uma microtendência exibia a duração de 2 a 5 anos, enquanto uma macrotendência tinha a longevidade de 5 a 10 anos. 

O incentivo que as plataformas digitais exercem nos consumidores, fazendo com que estes comprem centenas de produtos – maioritariamente em lojas de moda ultrarrápida – de uma vez e o façam de uma forma imponderada e instintiva, reduziu o ciclos de microtendências a um período de 2 a 3 meses.

“É muito fácil vermos as coisas e, consequentemente, termos um maior desejo de compra. Estamos no nosso Instagram, podemos nem estar à procura de algo em específico e, de repente, aparece um artigo de uma loja que tem a capacidade de te provocar um desejo que originalmente não tinhas. A publicidade existe, desde sempre, para gerar desejo de consumo e, se existem mais canais onde se torna possível fomentar esse desejo, é normal que o consumo aumente. Isso tem muita influência na aceleração dos ciclos de moda”, expõe Margarida.

A génese das tendências

Tradicionalmente, o processo de estabelecimento de uma tendência era da responsabilidade total das grandes casas de luxo e dos editores de renomadas publicações da área da moda. Todavia, esse monopólio sob a popularidade de certos estilos e peças extinguiu-se após a inserção dos novos média (e suas potencialidades) na equação, partilhando a função com o estilo de rua – conhecido como street style -, as celebridades, as diferentes cidades da moda e os influenciadores digitais.

Enquanto Ariana Grande impulsionou a corrida às lojas, em busca de hoodies oversize, Kim Kardashian reinventou os calções de corte tipo ciclista e Sarah Jessica Parker fez todos os consumidores suspirar pelos sapatos de Manolo Blahnik.

Durante anos, as parcerias destas figuras de renome com designers e stylists revolucionaram o mundo da moda, propondo novas tendências e estabelecendo uma imagem construída com a curadoria minuciosa de uma vasta equipa. Se, por um lado, artistas e figuras de notoriedade continuam a agitar a esfera pública com os seus modelos, a emergência dos bloggers e criadores de conteúdo trouxe uma frescura e autenticidade que obrigou a indústria a trabalhar mais e mais depressa.

“Esse espaço [de responsabilidade na criação de tendências] tornou-se mais abrangente e, em parte, menos exclusivo. Celebridades e artistas continuam a ser influenciadores e criadores de tendências, embora agora exista um grupo de pessoas, que criam conteúdos para as redes sociais de forma profissional, com o mesmo estatuto”, ilustra Carolina Nelas.

Os consumidores têm, agora, a possibilidade de escolher a que tipo de conteúdo se expõem – quais os influenciadores digitais que seguem, quais as correntes que subscrevem e quando entram em contacto com elas. Isto constitui um problema, na perspetiva comercial e criativa das marcas, pois, se qualquer pessoa pode ser um influencer, então as tendências podem surgir de qualquer fonte, por mais imprevisível e desorientada que seja.

Confrontadas com o crescente descrédito dos públicos nas formas mais clássicas de publicidade, as próprias marcas de luxo viram-se forçadas a estabelecer uma aliança com instagrammersyoutubers tiktokers, como meio de formar uma conexão com as novas gerações. Se Emma Chamberlain conquistou a sua audiência utilizando casacos felpudos da Forever 21, apresenta-se agora na passadeira vermelha da Met Gala, vestida pela Louis Vuitton e, se Dixie D’Amelio atingiu o estrelato com a publicação de pequenos vídeos no TikTok, é atualmente a cara associada aos Kosmo Rider da Puma.

 

 

Margarida Brito Paes acrescenta que “o trabalho das marcas passa por saber escolher as pessoas certas para se aliarem. Hoje a dia quando escolhem alguém para representar uma marca, a maior preocupação são as características dessa pessoa, a sua personalidade, aquilo que ela diz – isso tornou-se mais importante que a sua imagem, porque atualmente somos todos questionados”.

Um estudo realizado pela plataforma Shopify concluiu que para 70% dos consumidores é mais provável a aquisição de um produto, após este ser recomendado por alguém que eles seguem nas redes sociais – uma percentagem que aumenta se o grupo em análise for composto apenas por millenials. Estes factos não são ignorados pelos responsáveis das marcas, que se sentem na necessidade de acompanhar as sensações e influências estéticas em vigor nas comunidades digitais e replicá-las, “as marcas ficaram muito mais acessíveis a ser interpretadas pelos clientes e consumidores, bebendo elas próprias inspiração daí. Isso tornou-se um grande gerador de tendências, há conceitos que pegam e não vêm necessariamente de uma marca. As tendências deixaram de ter só a ver com a peça de roupa, com o padrão, com a cor… e começaram a estar ligadas ao styling”.


Redes sociais e o fenómeno da overconsumption

Por outro lado, mesmo que os criadores de conteúdo e fashion bloggers tenham atingido um estatuto que lhes permite partilhar espaço com marcas de luxo, celebridades e membros da elite, isso não significa que as suas comunidades partilhem da possibilidade. Apesar de serem impactados por toneladas de conteúdo diariamente, os consumidores são, muitas vezes, forçados a recorrer a alternativas e réplicas mais adequadas à sua capacidade financeira.

Este cenário transformou-se no ambiente perfeito para as marcas de fast fashion prosperarem no mercado, de um modo inédito. As tendências deixaram de estar restringidas no espaço, ou tempo, pois o imediatismo da internet permite que os consumidores estejam constantemente conectados e a agilidade da indústria têxtil ultrarrápida permite uma compra precipitada, momentânea e, acima de tudo, barata.

Hauls de compras, fotografias de visuais e tiktoks com a tendência mais recente -o compromisso de ter conteúdo diário, atualizado e na moda fala, muitas vezes, mais alto que os encargos sociais e ambientais que são colocados em causa pelas lojas em questão. “Acredito que há, cada vez mais, a consciência de que os custos de produção que as grandes marcas de fast fashion praticam não são possíveis sem condicionar algum dos fatores que procuramos (condições de trabalho, origem ética dos materiais, sustentabilidade, preço ou qualidade). Ainda assim, temos um longo caminho para percorrer e ainda há muita gente que não entende que algo está errado no processo quando uma peça de roupa tem um preço que, numa produção justa, não pagaria sequer o tecido necessário para a criar”, reflexiona Carolina Nelas.

As estatísticas apontam para uma produção anual de entre 80 e 100 biliões de peças de roupa, com o típico consumidor a comprar cerca de 60% mais que aquilo que se observava há 15 anos. Prevê-se que as receitas geradas pelo consumo de roupa de mulher rondem os 740 biliões de euros, no final de 2022, e o números apontam para cerca de 92 milhões de toneladas de desperdício por ano estarem associadas à indústria têxtil. Maiores índices de consumo também se refletem na percentagem de utilização da mesma peça de roupa: um indivíduo utiliza um modelo 36% menos que há 19 anos, sendo que uma percentagem inferior a 1% destes é reciclada.

“O objetivo é estar sempre a trazer novidades e novas propostas. No entanto, essas propostas não foram desenhadas anteriormente. Muita coisa entra no catálogo a partir de observação de mercado, se percebem que há um vestido de luxo que toda a gente quer e está a gerar muitos comentários, vão criar algo parecido e vender. Eles têm essa capacidade de disponibilizar algo automaticamente”, enuncia Margarida, quando questionada relativamente aos processos de produção das marcas de fast fashion.


Consequências

A conversa sobre o impacto social, ambiental e económico da fast fashion tem sido colocada em cima da mesa em múltiplas ocasiões. Contudo, a gravidade do cenário atual do setor têxtil tem tomado proporções mais preocupantes e problemáticas de ano para ano.

Atualmente, a indústria da moda é considerada uma das mais poluentes, sendo responsável por 10% da emissão global de dióxido de carbono – através das dinâmicas de transporte e exportação -, 20% da poluição das águas e consumo excessivo de H2O – são necessários 20 mil litros de água para produzir 1kg de algodão.

Margarida Brito Paes analisa a questão, afirmando que “mesmo se contarmos apenas a pegada de carbono o impacto já é gigantesco. De seguida, ainda existem todo um conjunto de questões, sobre materiais e tratamento dos materiais. Quando aconteceu a febre do algodão biológico ficou-se com a ilusão que a solução seria apostar nessas plantações, depois começou-se a perceber que essas quintas pagavam aos seus empregados apenas um terço daquilo que seria expetável”.

 

As consequências sociais revelam também condutas censuráveis e desrespeitadoras da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Existem evidências de trabalho infantil e forçado na indústria têxtil em países como Argentina, Bangladesh, Brasil, Turquia, China, entre outros; e estima-se que o salário médio de um operário de uma fábrica do setor ronde os 90 euros mensais. Paralelamente, devido às pressões impostas por mudanças climáticas, pragas e dificuldades financeiras, calcula-se que cerca de 250 mil produtores de algodão tenham recorrido ao suicídio, na índia, nos últimos 15 anos. “Quando falamos de sustentabilidade no setor têxtil temos de falar daquilo que é sustentável a nível ambiental e social, nunca podemos dissociar uma coisa da outra”, conclui a jornalista.

Para Carolina Nelas, “A nível social, aumentam as desigualdades - países pobres continuam a ser explorados pelos grandes grupos económicos (porque o lucro é a prioridade) e as comunidades desses mesmos países têm vidas e condições de trabalho desumanas. Em termos ambientais, sabemos que o setor da moda é um dos mais poluentes do mundo e isso deve-se, em grande parte, às quantidades absurdas que são produzidas para corresponder aos desejos de uma população que compra cada vez mais, mais barato e não pensa no impacto da sua compra”.

As previsões para o futuro da moda não contrariam o crescimento das lojas de rápida produção, apontando para uma valorização de mercado de 188 biliões de euros até 2030.

“Nenhuma marca muda por livre e espontânea vontade. Elas foram criadas para ganhar dinheiro. São um negócio. E elas correspondem aos pedidos dos consumidores e adaptam-se a eles, portanto está nas mãos dos consumidores mudar as dinâmicas das marcas”.

terça-feira, 26 de abril de 2022

  por Matilde Castanho

O ano era 2005, o relógio marcava as dezanove horas e o genérico da série Morangos Com Açúcar soava em todas as casas portuguesas, em que vivessem jovens dos doze aos dezoito. Voltas e reviravoltas, corta a cena para o momento em que Joana Duarte, na pele da protagonista, se debruça sobre o seu computador portátil – na altura da grossura de uma enciclopédia - e atualiza, religiosamente, o seu blog“Hoje começaram as aulas. Estou num colégio novo, mas tenho algumas saudades da minha antiga escola (…)”.

E, por todo o país, dezenas de bloggers seguiam a mesma rotina, servindo-se da Internet para partilhar as suas experiências e expressar as suas opiniões, numa era em que as redes sociais ainda não dominavam a esfera pública.  

Apesar das ferramentas e plataformas que permitem a criação e manutenção de blogs terem surgido durante os anos noventa, foi no início do milénio que blogging – o ato de escrever num blog - se tornou popular. E, se numa ponta do espectro, se encontravam jornalistas, fotógrafos, políticos e escritores a tirar partido da independência e liberdade criativa, económica e expressiva que uma plataforma com curadoria própria lhes proporcionava; na outra estavam cidadãos comuns, de todas as idades, que encontraram na blogosfera – comunidade digital de autores e leitores de blogs – um espaço seguro para publicar sobre o seu quotidiano, os seus interesses e as questões que lhes eram mais queridas, de um modo recreativo e extracurricular. Esse segundo grupo constitui a génese dos influenciadores digitais que conhecemos atualmente.

Tendo a autenticidade a seu favor, os blogs conquistaram a atenção dos utilizadores da internet por serem plataformas criativas e honestas. Quando recorda o seu primeiro contacto com a blogosfera, em 2008, Inês Mota, autora de Bobby Pins, confidencia “não existia esse conceito de ‘criar conteúdo’. Os blogs eram autênticos diários digitais, onde as pessoas escreviam praticamente sem filtros. A curadoria dos conteúdos e o planeamento de artigos surgiu muitos anos mais tarde, mas lembro-me que me fascinou a ideia de poder ter um espaço digital só meu, onde podia ser autêntica e comunicar o que me entusiasmava”.

Numa era em que a presença online se manifestava maioritariamente como apenas uma ocupação dos tempos de lazer, a facilidade (e gratuitidade) em configurar um website, aliada à possibilidade de o fazer de forma anónima, ajudou esta comunidade, formada por indivíduos com urgência em enunciar-se, a construir por si própria um local para o fazerem, a blogosfera portuguesa, na altura, era bem diferente da blogosfera atual. Havia muito companheirismo e empatia entre todos. Talvez por muitos terem perfis anónimos, era fácil desabafar e criar conteúdo, pois tínhamos sempre alguém que se iria identificar e apoiar o nosso trabalho. Como é óbvio, não tinha a repercussão que atualmente um perfil de Instagram por exemplo tem, mas talvez precisamente por isso nos sentíamos tão bem acolhidos e protegidos. Era uma bolha, o safe space daquelas pessoas. Foi isso que me fez ficar tanto tempo, revela João Moreira, criador do Brisa Passageira e autor de vários blogs, até ao ano de 2020.

O processo de evolução destas plataformas – e seus respetivos criadores de conteúdo – ocorreu debaixo dos holofotes, tendo sido vítimas de diversas tendências, influências ou movimentos. No espaço de uma década, os blogs sobreviveram a diversos fenómenos linguísticos, estéticos, literários e até artísticos, “quem lia foi ficando cada vez mais exigente – e ainda bem -, e os próprios autores também começaram a ter um cuidado especial na escrita e na aparência dos blogs. Tudo isso coincidiu com o fim dos autores anónimos, as pessoas começaram a revelar o rosto, a cidade onde moravam, partilhavam fotografias reais. Talvez porque as restantes redes sociais estavam no auge e havia essa necessidade de aproximação” analisa João.

No entanto, após a sua ascensão meteórica no espaço mediático, os blogs tiveram o seu óbito declarado em 2014, por publicações de renome como o jornal The Guardian e a New York Magazine. Subitamente, grande parte dos utilizadores da internet tinha à sua disposição um smartphone com acesso a aplicações como Facebook, Twitter, ou Tumblr, onde os canais de comunicação eram imediatos, infinitos e contínuos. 

A consequência desta rapidez e simplicidade veio trazer complicações ao trabalho dos bloggers, que começaram a ser cada vez mais pressionados a captar a atenção de leitores.

“As plataformas são muito limitadas, sem grande margem para personalizar o aspeto do site e formatar o texto de acordo com as preferências. O facto de surgir um link com o acesso a uma segunda plataforma acabou por fazer com que os blogs ocupassem um segundo plano, porque não têm o imediatismo a que as redes sociais nos habituaram.  O surgimento de outras plataformas fez com que nos adaptássemos a uma nova rapidez de leitura – o que poderá não ser bom”, conclui Inês Vivas, autora do Esternocleidomastóideu, quando questionada relativamente às desvantagens dos blogs, perante a emergência das redes sociais, “um vídeo com uma pessoa a falar connosco para a câmara terá sempre mais proximidade do que uma página em branco com palavras. São conteúdos mais sedutores para o público (não necessariamente mais enriquecedores, mas isso também não é exclusivo ou garantido nos blogs)”, explora Inês Mota.

Se muitos bloggers, após confrontados com este novo cenário, abandonaram os seus projetos, outros optaram por efetuar um êxodo para as aplicações com que estavam a concorrer. 

A profissão de influenciador digital solidificou-se e o estatuto de amador, anteriormente o maior trunfo dos blogs, deixou de caracterizar a comunidade de criadores de conteúdo digital, para João Moreira “era uma comunidade bem mais positiva e feliz [a blogosfera]. Não chegávamos a tanta gente, mas talvez fosse esse o segredo. Sinto falta dessa proximidade, que é difícil de manter com um criador de conteúdo de Instagram ou Youtube. As palavras escritas e lidas aconchegam-nos de uma maneira diferente”.

Todavia, apesar de não serem detentores do título de plataforma favorita da grande maioria dos utilizadores da internet, os blogs continuam muito presentes na rede - ocupando agora um lugar de nicho e servindo predominantemente para responder a questões específicas sobre determinadas matérias, “é nos blogs e nos sites que procuramos as informações e opiniões mais detalhadas. Talvez não nos apercebamos, mas quando procuramos algo no Google – seja uma opinião de um tema atual, uma review de um livro, de um creme em específico, dicas de viagem, de locais a visitar, receitas e muito mais -, é a um blog que vamos parar. Podemos não segui-lo, nem conhecer o autor, mas está ali pronto para ser lido por quem procura conteúdo mais filtrado”.

Ainda que as tendências sejam marcadas por aplicações que consomem cada vez menos tempo – aumentando a impaciência dos cibernautas e a sua exigência por conteúdos rápidos e superficiais -, como observamos através do abandono dos longos vídeos de Youtube em detrimento dos meros quinze segundos ocupados por um TikTok, ou Instastory (onde, mesmo assim, os criadores de conteúdo se veem forçados a colocar um pedido de “vejam até ao final”); muitos bloggers continuam empenhados em publicar conteúdo que impacte e apele a todos os leitores que estejam disponíveis a dedicar-lhe dez minutos do seu dia, Inês Mota afirma “creio que os blogs irão ter sempre uma posição no digital, mais não seja porque são uma fonte indexada de informação que está ao nosso alcance cada vez que pesquisamos alguma coisa. Do ponto de vista social, acho que assumiram que são uma plataforma de nicho para um público que gosta de blogs e gosta de ler, já que a restante audiência encontrou novas plataformas para se conectar e entreter, mais interessantes para o seu perfil”.

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