A cultura da moda na era digital

 por Matilde Castanho

Vinte e quatro horas – o tempo necessário para que uma peça de roupa viral nas redes sociais seja recriada e adicionada aos produtos disponíveis no catálogo de uma loja de fast fashion, tornando-se na tendência em vigor, até ser substituída por um novo conceito nas vinte e quatro horas seguintes.

Atualmente apontados como sendo um dos conteúdos mais populares para os usuários, os vídeos identificados com #haul – onde os criadores de conteúdo exibem produtos e peças adquiridos numa determinada loja – acumulam mais de 15 biliões de visualizações na aplicação TikTok e contabilizam-se mais de 400 milhões de fotografias publicadas na plataforma Instagram com a designação #ootd (outfit of the day). 

A popularidade destes posts, aliada à resposta supersónica das marcas de moda ultrarrápida constituem a génese de um novo fenómeno na cultura da moda: a redução do ciclo de vida das microtendências; de 3 anos para 3 meses.



Estima-se que cerca de 60% da população mundial esteja presente nas redes sociais. O seu caráter interativo e o dinamismo que oferecem a indivíduos e entidades provocaram uma reestruturação social a diferentes níveis. As plataformas digitais são, atualmente, uma peça importante na política internacional, afetando diretamente também os setores da saúde, finanças e marketing, enquanto simultaneamente provocam mudanças profundas na perceção e análise cultural.

No setor têxtil, o domínio das redes sociais não só foi marcado pela presença de uma maioria esmagadora de marcas de moda nas diversas aplicações, mas também pela revolução do sistema de tendências, a que tanto produtores como consumidores estavam adaptados.

Se nas décadas anteriores, o surgimento de novos movimentos, ou modas era controlado e estabelecido por uma elite de editores, fotógrafos e estilistas, neste momento observa-se que os consumidores não atribuem o mesmo valor à validação destes profissionais da indústria da moda. A autonomia e irreverência das figuras por detrás dos blogs de moda (nas suas diferentes facetas e plataformas) tomou o controlo, reclamando para si a função de decretar o que se torna popular (ou não).

Assumindo este cenário, os influenciadores digitais possuem os critérios necessários para estabelecer e fomentar novas tendências: um acesso direto ao processo de produção das marcas e às fontes de inspiração dos designers; e uma legitimação obtida pelo seu número de seguidores, “a verdade é que, hoje em dia, uma marca que queira comunicar não pode passar sem influencers, quando provavelmente poderá passar sem anúncios em revistas de moda. É preciso que seja uma marca muito especial, com uma identidade muito própria, para conseguir obter sucesso sem presença nas redes sociais”, explica Margarida Brito Paes, jornalista de moda.

Este desaparecimento de hierarquias tão evidentes no universo da moda, transforma cada utilizador das redes sociais num potencial criador de tendências – como consequência, os consumidores esperam que as marcas estejam atentas à renovação dos ciclos e se reinventem constantemente, colocando novos produtos no mercado o mais rapidamente possível, e tenham a capacidade de prever futuras tendências. Carolina Nelas, especialista em Marketing e Comunicação, com experiência na área da moda, afirma, “tudo acontece mais rápido. Costumo dizer que trabalhar em marketing é uma lição de humildade porque estamos constantemente a errar. O que funcionava há dois meses pode não ter qualquer impacto hoje”.


Os ciclos de moda

Um “ciclo de moda” é o nome atribuído ao tempo de vida (leia-se, popularidade) de uma tendência. É um fenómeno composto por cinco fases distintas, sendo elas: a introdução, a ascensão, o auge, o declínio e a obsolescência.

O processo de introdução corresponde à apresentação de um novo estilo/ conceito e ocorre, na sua maioria, durante os lançamentos de coleções nas principais semanas da moda, ou nas aparições de celebridades, em eventos da elite, trajadas de alta-costura – de qualquer modo, está intrínseco a criações luxuosas de designers, ou grandes marcas, comercializadas em pequenas quantidades e a preços incomportáveis.

A ascensão acontece quando determinada tendência deixa de ser exclusiva e começa a despertar interesse no público geral, ganhando ainda mais cobertura mediática e sendo replicada por marcas com preços mais praticáveis. Margarida Brito Paes clarifica “O que acontecia era uma espécie de pirâmide – primeiro acontecia o desfile, seis meses depois os clientes de luxo começavam a utilizar essas propostas e só mais tarde é que o mercado de massas pegava nessas tendências e daí construía alternativas mais acessíveis. Isso tornava o ciclo muito mais longo”.

De seguida, o auge marca o ponto de saturação da tendência. Atualmente, uma tendência atinge esta condição com uma rapidez insustentável, pois os consumidores revelam-se entediados e insatisfeitos por utilizarem peças de roupa fabricadas com qualidade medíocre e semelhantes às de todos os que o rodeiam. Para Carolina, nos dias de hoje, as marcas de moda rápida contribuem para a intensificação deste processo, “produz-se em grandes quantidades para conseguir preços baixíssimos, aposta-se em produtos tendência e promove-se o consumo por impulso através de novidades semanais e descontos”.

Como consequência, dá-se o declínio, onde o conceito apresentado deixa de ser popular e desejado (por ter perdido o seu estatuto de único e prestigioso). Por fim, a obsolescência marca o momento em que a tendência deixa de ser observada e abandona o mercado – no entanto, devido à natureza cíclica da indústria da moda, a probabilidade da sua reintrodução é bastante alta.

A introdução das redes sociais e de novos intervenientes no processo de propagação de tendências, veio alterar a dinâmica destes ciclos. Em décadas anteriores ao estabelecimento geral destas plataformas na sociedade, uma microtendência exibia a duração de 2 a 5 anos, enquanto uma macrotendência tinha a longevidade de 5 a 10 anos. 

O incentivo que as plataformas digitais exercem nos consumidores, fazendo com que estes comprem centenas de produtos – maioritariamente em lojas de moda ultrarrápida – de uma vez e o façam de uma forma imponderada e instintiva, reduziu o ciclos de microtendências a um período de 2 a 3 meses.

“É muito fácil vermos as coisas e, consequentemente, termos um maior desejo de compra. Estamos no nosso Instagram, podemos nem estar à procura de algo em específico e, de repente, aparece um artigo de uma loja que tem a capacidade de te provocar um desejo que originalmente não tinhas. A publicidade existe, desde sempre, para gerar desejo de consumo e, se existem mais canais onde se torna possível fomentar esse desejo, é normal que o consumo aumente. Isso tem muita influência na aceleração dos ciclos de moda”, expõe Margarida.

A génese das tendências

Tradicionalmente, o processo de estabelecimento de uma tendência era da responsabilidade total das grandes casas de luxo e dos editores de renomadas publicações da área da moda. Todavia, esse monopólio sob a popularidade de certos estilos e peças extinguiu-se após a inserção dos novos média (e suas potencialidades) na equação, partilhando a função com o estilo de rua – conhecido como street style -, as celebridades, as diferentes cidades da moda e os influenciadores digitais.

Enquanto Ariana Grande impulsionou a corrida às lojas, em busca de hoodies oversize, Kim Kardashian reinventou os calções de corte tipo ciclista e Sarah Jessica Parker fez todos os consumidores suspirar pelos sapatos de Manolo Blahnik.

Durante anos, as parcerias destas figuras de renome com designers e stylists revolucionaram o mundo da moda, propondo novas tendências e estabelecendo uma imagem construída com a curadoria minuciosa de uma vasta equipa. Se, por um lado, artistas e figuras de notoriedade continuam a agitar a esfera pública com os seus modelos, a emergência dos bloggers e criadores de conteúdo trouxe uma frescura e autenticidade que obrigou a indústria a trabalhar mais e mais depressa.

“Esse espaço [de responsabilidade na criação de tendências] tornou-se mais abrangente e, em parte, menos exclusivo. Celebridades e artistas continuam a ser influenciadores e criadores de tendências, embora agora exista um grupo de pessoas, que criam conteúdos para as redes sociais de forma profissional, com o mesmo estatuto”, ilustra Carolina Nelas.

Os consumidores têm, agora, a possibilidade de escolher a que tipo de conteúdo se expõem – quais os influenciadores digitais que seguem, quais as correntes que subscrevem e quando entram em contacto com elas. Isto constitui um problema, na perspetiva comercial e criativa das marcas, pois, se qualquer pessoa pode ser um influencer, então as tendências podem surgir de qualquer fonte, por mais imprevisível e desorientada que seja.

Confrontadas com o crescente descrédito dos públicos nas formas mais clássicas de publicidade, as próprias marcas de luxo viram-se forçadas a estabelecer uma aliança com instagrammersyoutubers tiktokers, como meio de formar uma conexão com as novas gerações. Se Emma Chamberlain conquistou a sua audiência utilizando casacos felpudos da Forever 21, apresenta-se agora na passadeira vermelha da Met Gala, vestida pela Louis Vuitton e, se Dixie D’Amelio atingiu o estrelato com a publicação de pequenos vídeos no TikTok, é atualmente a cara associada aos Kosmo Rider da Puma.

 

 

Margarida Brito Paes acrescenta que “o trabalho das marcas passa por saber escolher as pessoas certas para se aliarem. Hoje a dia quando escolhem alguém para representar uma marca, a maior preocupação são as características dessa pessoa, a sua personalidade, aquilo que ela diz – isso tornou-se mais importante que a sua imagem, porque atualmente somos todos questionados”.

Um estudo realizado pela plataforma Shopify concluiu que para 70% dos consumidores é mais provável a aquisição de um produto, após este ser recomendado por alguém que eles seguem nas redes sociais – uma percentagem que aumenta se o grupo em análise for composto apenas por millenials. Estes factos não são ignorados pelos responsáveis das marcas, que se sentem na necessidade de acompanhar as sensações e influências estéticas em vigor nas comunidades digitais e replicá-las, “as marcas ficaram muito mais acessíveis a ser interpretadas pelos clientes e consumidores, bebendo elas próprias inspiração daí. Isso tornou-se um grande gerador de tendências, há conceitos que pegam e não vêm necessariamente de uma marca. As tendências deixaram de ter só a ver com a peça de roupa, com o padrão, com a cor… e começaram a estar ligadas ao styling”.


Redes sociais e o fenómeno da overconsumption

Por outro lado, mesmo que os criadores de conteúdo e fashion bloggers tenham atingido um estatuto que lhes permite partilhar espaço com marcas de luxo, celebridades e membros da elite, isso não significa que as suas comunidades partilhem da possibilidade. Apesar de serem impactados por toneladas de conteúdo diariamente, os consumidores são, muitas vezes, forçados a recorrer a alternativas e réplicas mais adequadas à sua capacidade financeira.

Este cenário transformou-se no ambiente perfeito para as marcas de fast fashion prosperarem no mercado, de um modo inédito. As tendências deixaram de estar restringidas no espaço, ou tempo, pois o imediatismo da internet permite que os consumidores estejam constantemente conectados e a agilidade da indústria têxtil ultrarrápida permite uma compra precipitada, momentânea e, acima de tudo, barata.

Hauls de compras, fotografias de visuais e tiktoks com a tendência mais recente -o compromisso de ter conteúdo diário, atualizado e na moda fala, muitas vezes, mais alto que os encargos sociais e ambientais que são colocados em causa pelas lojas em questão. “Acredito que há, cada vez mais, a consciência de que os custos de produção que as grandes marcas de fast fashion praticam não são possíveis sem condicionar algum dos fatores que procuramos (condições de trabalho, origem ética dos materiais, sustentabilidade, preço ou qualidade). Ainda assim, temos um longo caminho para percorrer e ainda há muita gente que não entende que algo está errado no processo quando uma peça de roupa tem um preço que, numa produção justa, não pagaria sequer o tecido necessário para a criar”, reflexiona Carolina Nelas.

As estatísticas apontam para uma produção anual de entre 80 e 100 biliões de peças de roupa, com o típico consumidor a comprar cerca de 60% mais que aquilo que se observava há 15 anos. Prevê-se que as receitas geradas pelo consumo de roupa de mulher rondem os 740 biliões de euros, no final de 2022, e o números apontam para cerca de 92 milhões de toneladas de desperdício por ano estarem associadas à indústria têxtil. Maiores índices de consumo também se refletem na percentagem de utilização da mesma peça de roupa: um indivíduo utiliza um modelo 36% menos que há 19 anos, sendo que uma percentagem inferior a 1% destes é reciclada.

“O objetivo é estar sempre a trazer novidades e novas propostas. No entanto, essas propostas não foram desenhadas anteriormente. Muita coisa entra no catálogo a partir de observação de mercado, se percebem que há um vestido de luxo que toda a gente quer e está a gerar muitos comentários, vão criar algo parecido e vender. Eles têm essa capacidade de disponibilizar algo automaticamente”, enuncia Margarida, quando questionada relativamente aos processos de produção das marcas de fast fashion.


Consequências

A conversa sobre o impacto social, ambiental e económico da fast fashion tem sido colocada em cima da mesa em múltiplas ocasiões. Contudo, a gravidade do cenário atual do setor têxtil tem tomado proporções mais preocupantes e problemáticas de ano para ano.

Atualmente, a indústria da moda é considerada uma das mais poluentes, sendo responsável por 10% da emissão global de dióxido de carbono – através das dinâmicas de transporte e exportação -, 20% da poluição das águas e consumo excessivo de H2O – são necessários 20 mil litros de água para produzir 1kg de algodão.

Margarida Brito Paes analisa a questão, afirmando que “mesmo se contarmos apenas a pegada de carbono o impacto já é gigantesco. De seguida, ainda existem todo um conjunto de questões, sobre materiais e tratamento dos materiais. Quando aconteceu a febre do algodão biológico ficou-se com a ilusão que a solução seria apostar nessas plantações, depois começou-se a perceber que essas quintas pagavam aos seus empregados apenas um terço daquilo que seria expetável”.

 

As consequências sociais revelam também condutas censuráveis e desrespeitadoras da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Existem evidências de trabalho infantil e forçado na indústria têxtil em países como Argentina, Bangladesh, Brasil, Turquia, China, entre outros; e estima-se que o salário médio de um operário de uma fábrica do setor ronde os 90 euros mensais. Paralelamente, devido às pressões impostas por mudanças climáticas, pragas e dificuldades financeiras, calcula-se que cerca de 250 mil produtores de algodão tenham recorrido ao suicídio, na índia, nos últimos 15 anos. “Quando falamos de sustentabilidade no setor têxtil temos de falar daquilo que é sustentável a nível ambiental e social, nunca podemos dissociar uma coisa da outra”, conclui a jornalista.

Para Carolina Nelas, “A nível social, aumentam as desigualdades - países pobres continuam a ser explorados pelos grandes grupos económicos (porque o lucro é a prioridade) e as comunidades desses mesmos países têm vidas e condições de trabalho desumanas. Em termos ambientais, sabemos que o setor da moda é um dos mais poluentes do mundo e isso deve-se, em grande parte, às quantidades absurdas que são produzidas para corresponder aos desejos de uma população que compra cada vez mais, mais barato e não pensa no impacto da sua compra”.

As previsões para o futuro da moda não contrariam o crescimento das lojas de rápida produção, apontando para uma valorização de mercado de 188 biliões de euros até 2030.

“Nenhuma marca muda por livre e espontânea vontade. Elas foram criadas para ganhar dinheiro. São um negócio. E elas correspondem aos pedidos dos consumidores e adaptam-se a eles, portanto está nas mãos dos consumidores mudar as dinâmicas das marcas”.

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