Onde estão as autoras portuguesas?

por Matilde Castanho

Ricardo Reis caminha sobre a calçada portuguesa, percorrendo a mesma Lisboa que, dois séculos antes, viu nascer o amor de Blimunda e Baltasar. Cumprimenta, com um breve aceno do chapéu, o velho senhor que intercepta o seu caminho, sem saber que diante de si está Carlos da Maia, outrora um jovem destroçado.

A paisagem que o seu olhar alcança revela-lhe o oceano de onde os portugueses haviam, um dia, partido, preparados para serem imortalizados como heróis de uma epopeia. Contemplando o cenário, pergunta-se se os peixes daquelas águas ainda se recordam das palavras que Santo António lhes dedicou.

Numa sala de aula distante, os livros estão abertos e os protagonistas preparam-se para contar as suas histórias a uma nova geração de estudantes portugueses. Todavia, a questão que se levanta permanece intocável há décadas: onde estão as autoras portuguesas e porque é que não têm lugar nos programas curriculares?


Os Programas e Metas Curriculares elaborados tendo em conta os objetivos de aprendizagem relativos à disciplina de Português – que acompanha os jovens desde o seu primeiro ano de escolaridade até ao 12º - propõem parâmetros pedagógicos específicos no que diz respeito às áreas da oralidade, gramática, escrita e educação literária.

Para além das avaliações obtidas em regime de frequência, os estudantes portugueses são também submetidos às classificações de quatro provas nacionais distintas, durante o seu percurso académico, sendo elas as provas de aferição, no 2º e 8º ano, e os exames nacionais realizados no 9º e 12º.

Na sua totalidade, são nomeados cento e dezoito autores no decorrer da Lista de Obras e Textos que direciona e orienta o padrão referente à leitura. Nomes como Camilo Castelo Branco, José Saramago, Fernando Pessoa e Eça de Queiróz são mencionados frequentemente, devido à sua contribuição e relevância no setor literário português, sendo importante ter em consideração que “os programas escolares e a sua lecionação são a mais importante forma de institucionalização da literatura e da elaboração de uma espécie de cânone de autores clássicos – que são considerados clássicos justamente porque são dados na classe – que são de leitura aconselhada ou obrigatória em vários graus de ensino”, como explica Ana Luísa Vilela, professora na Universidade de Évora, doutorada em Literatura Portuguesa.

Por outro lado, apenas vinte e quatro escritoras do sexo feminino são referenciadas nestes mesmos programas curriculares, o que corresponde somente a 20% do total. Sophia de Mello Breyner e Alice Vieira apresentam uma maior presença, seguidas de Matilde Rosa Araújo, Luísa Ducla Soares, Maria Alberta Menéres e Luísa Dacosta. “Eu lembro-me de chegar à secundária e pensar nessa desigualdade, porque sempre me senti mais atraída por literatura de autoria feminina e tinha de a procurar fora das propostas que surgiam na escola. É triste, enquanto estudantes e mulheres portuguesas, não termos alguém [no programa curricular] com quem nos possamos identificar e que nos possa representar [no mundo literário], confessa Beatriz Lopes ao recordar a sua experiência enquanto aluna de Português.

A ausência de obras de literatura feminina de referência nos currículos da disciplina pode ser explicada por várias razões, entre as quais a distribuição e organização da sociedade portuguesa até ao século XX – que afastava as mulheres do exercício da arte e cultura –; e a existência de critérios patriarcais e obsoletos (conscientes ou não) no processo de seleção e escolha.

“É evidente que a autoria feminina existiu desde sempre, mas também é evidente que a sociedade portuguesa foi – e ainda é – regida por um sistema patriarcal. Isso implica que quem estabelece o cânone privilegie as obras daqueles que têm mais acesso à cultura e com quem se identificam mais. E quem tem mais acesso à cultura, quem sempre teve mais acesso à cultura, foram os homens”, afirma Ana Luísa Vilela, continuando “tanto quem diz que os programas são feitos à luz de uma ideologia patriarcal e tradicionalista, como quem diz que as mulheres não tiveram acesso à cultura, tem razão. Da Idade Moderna para cá, as mulheres mais cultas eram aquelas que estavam livres da tutela masculina, ou por pertencerem ao clero, ou por serem viúvas”.

Para Ana Cabete, professora do Ensino Secundário, “A prevalência de autores masculinos europeus de pele clara reflete a realidade histórica da Europa e, sobretudo, do nosso país. Até ao 25 de Abril de 1974, a larga maioria da população portuguesa era analfabeta, excluindo-se deste analfabetismo sistémico os homens brancos pertencentes a famílias financeiramente privilegiadas. Neste contexto, é natural que a maioria dos autores até ao século XX, selecionados para o programa de Português, sigam este padrão. Já não considero tão consensual a escolha de autores homens e brancos dentro do cânone do século XX e XXI. Por exemplo, a poesia portuguesa atual é escrita maioritariamente por mulheres e esse facto ainda não se reflete nos manuais escolares. O mesmo sucede com as obras escritas por minorias. Como explicar este facto? Conservadorismo e inércia, talvez. Mudar um padrão é um processo lento e moroso”.


Movimentos literários e temas recorrentes nas obras

Várias escolas literárias estão representadas nos programas curriculares. A Era Medieval marca a sua presença através da poesia trovadoresca, dos relatos de Fernão Lopes sobre a vida na Corte portuguesa e das sátiras de Gil Vicente. O período Clássico é estudado em Luís de Camões (Classicismo) e Padre António Vieira (Barroco); e a Era Moderna tem como embaixadores Alexandre Herculano, Almeida Garret e Camilo Castelo Branco, inseridos no movimento do Romantismo, Eça de Queiróz enquanto representante do Realismo, e Fernando Pessoa como cara principal do Modernismo.

A forma como o programa está organizado, apesar de ser lógica e em sequência, relega os escritores atuais para as últimas aulas do ano letivo, quando professores e alunos já estão menos disponíveis e pressionados pelo cumprimento do programa. A este propósito, é óbvio que os programas são de uma ambição desmedida e paralisante e não propiciam qualquer margem para a discussão de outras obras que não as inscritas no rígido cânone. Esse é um dos grandes problemas do ensino, hoje em dia”, reflete Ana Cabete, defendendo que considera que os escritores dos séculos XX e XXI se revelam excelentes oportunidades de partilha e mudança na sala de aula.

A nível de temáticas, é frequente (e quase exclusivo) a ação estar centrada nas classes mais altas das sociedades portuguesas das diferentes épocas. A perda do estatuto de leitura obrigatória d’O Memorial do Convento, por José Saramago, separou os alunos duma narrativa focada em personagens pertencentes ao povo – suas dinâmicas e problemáticas – e, a par com o afastamento de Felizmente Há Luar, por Luís de Sttau Monteiro, resultou na ausência de duas personalidades femininas de grande relevo e importância literária e cultural: Blimunda e Matilde de Melo. “As personagens femininas que nós encontramos ou são retratadas como bruxas, más, o fruto de todo o pecado – numa abordagem totalmente pejorativa -, ou então são personagem sem dimensão nenhuma, que aceitam as condições do seu destino e não procuram evoluir ao longo da história. E essas duas alternativas não servem. Dêem-nos algum crédito, deixem-nos saber as batalhas das nossas antepassadas, dêem-nos alguém para ler que nos vá inspirar a ser uma boa mulher”, propõe Beatriz.

Apesar da qualidade das obras selecionadas não estar em discussão, sabendo que estas são o resultado de um trabalho intelectual e literário de valor inestimável na construção da identidade e cultura portuguesa, a necessidade de ver retratados outros grupos sociais, outros heróis e outros géneros literários mais apelativos às gerações mais novas (como o thriller e a ficção científica) surge várias vezes em conversa. Para Ana Cabete “os escritores, homens brancos e privilegiados, escreviam sobre os conflitos existentes dentro da sua esfera de ação: a sociedade portuguesa era, de facto, estratificada e sem mobilidade social. Perpetua-se, assim, através da literatura, uma ideia equivocada do país e aumenta a distância entre o leitor e as problemáticas abordadas nos textos estudados”.

 

Falta de diversidade nos currículos e consequências

O domínio masculino (branco e heteronormativo) do programa curricular da disciplina de Português faz levantar, entre outras, a questão da representatividade na sala de aula. As realidades temporais distintas, aliadas ao privilégio sistémico de que os autores gozavam, torna frequente a existência de estereótipos e preconceitos nas páginas das obras em estudo.

Em 2021, a investigadora Vanusa Vera-Cruz Lima chamou à atenção para a existência de passagens de teor racista n’Os Maias, livro publicado em 1888, recomendando que a leitura em sala de aula devia, por isso, incluir um comentário de teor pedagógico que tenha como objetivo desconstruir e contextualizar os excertos em questão. “Nós devemos ler as obras tendo em atenção o contexto em que foram escritas, mas numa aula de adolescentes – ou pré-adolescentes – é difícil de explicar que não há reflexos de preconceitos, quando os há. Não podemos julgar o passado com os valores do presente, mas é evidente que devemos dizer aos alunos que estejam atentos. A arte deve ser observada com olhos estéticos: contextualizando-a, compreendendo-a e sabendo que o presente está mais adiantado que o passado e, por isso, podemos não ser censores, mas paternalistas”, defende Ana Luísa Vilela.

A representatividade é atualmente discutida em larga escala como sendo um fator essencial na educação dos jovens, com grandes companhias mediáticas a fazerem alterações nos seus conteúdos e colocarem avisos de gatilho quando certos limites são ultrapassados. No contexto educativo, essa missão recai sobre os professores, que trabalham em conjunto com os alunos para ultrapassar barreiras e combater discriminações, “discutir, questionar e problematizar são sempre as melhores estratégias até no sentido de aprendermos, todos, a não cometermos os mesmos erros do passado. Quando a representatividade não acontece naturalmente, penso que compete ao professor ter a sensibilidade de a provocar”, explica Ana Cabete.

Por outro lado, o caráter restrito e exclusivo dos programas curriculares pode resultar num desânimo por parte dos jovens face à literatura, para Beatriz Lopes, “quando eles escreveram as suas obras, o público-alvo eram as classes altas (maioritariamente, os homens), o que levanta a questão de ser preciso acrescentar novas obras que, desta vez, sejam dirigidas a nós. Nem precisam de ser obras recentes, em Portugal existiram muitas mulheres e muitas pessoas de cor a contar histórias partindo da sua perspetiva e isso não está retratado no currículo. Possivelmente, seriam leituras muito mais interessantes para a mente de um adolescente”.

Num país onde as estatísticas apontam para um número elevado de pessoas sem hábitos literários, a introdução de novos autores e novas temáticas poderia reverter esta tendência e abrir um caminho mais amplo e diversificado para o universo da literatura. “Penso que há abertura dos professores para rever os programas e tornar as coisas mais fáceis, tem de haver. Não sei se de quem faz os programas existe, mas de quem os aplica e faz a sua gestão creio que há”.

 

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