"Não posso, estou de dieta"

 por Matilde Castanho 

“Como não comi hidratos de carbono, nem açúcar durante três semanas, vamos fazer uma festa com pizza e donuts no hotel”, afirma Kim Kardashian, uma das celebridades mais seguidas do mundo, após confessar, na passadeira vermelha da MET Gala, ter perdido aproximadamente 7 quilos em três semanas.

A confissão gerou, quase instantaneamente, polémica nas redes sociais, criando espaço para a abertura de uma discussão sobre a cultura da dieta, os seus principais impulsionadores e as origens dos padrões de beleza vigentes atualmente.


O que é a Cultura da Dieta?

A “cultura da dieta” está definida como sendo um conjunto de crenças e valores que priorizam a magreza, aparência e forma acima da saúde e bem-estar. Estando assente sobretudo em práticas de restrição alimentar, assume-se como uma cultura dominante no ocidente, moldando a maneira como a generalidade observa e avalia conceitos relacionados com a beleza e sendo a principal influente nas rotinas íntimas e pessoais de cada um.

A sua participação sistémica na sociedade fez com que se manifeste diariamente através de todos os canais de comunicação disponíveis, quer seja através dos media, ou em interações pessoais, e abriu caminho para a criação de uma indústria (de redução de peso) avaliada em cerca de oitenta biliões de dólares, em 2022.

Apesar de, na sua génese, as dietas terem sido concebidas com vista num público masculino – estando um dos primeiros registos de uma dieta líquida ligado a William, o Conquistador (1028) – são, atualmente, percecionadas como uma ferramenta do patriarcado, “Mulheres, entre as fases da adolescência e idade adulta são o grupo com maior sentimento de “pressão em atingir x padrão”, logo são consequentemente o grupo que mais sofre com este assunto. Existem vários motivos pelos quais este grupo sofre mais deste “fenómeno”, um deles vem da necessidade de agradar aos outros para sobreviver/garantir uma boa qualidade de vida”, explica Daniela Mendes, psicóloga.

A passagem da beleza de uma característica natural para algo que pode ser adquirido, comprado ou produzido, foi uma ideia que ganhou cada vez mais repercussão com a democratização dos média e surgimento da internet e redes sociais. Estes novos meios de comunicação, que possibilitam a manipulação de (auto)imagens, criam padrões estéticos e fundam padrões corporais, que, de acordo com Daniela “muitas vezes geram admiração e desejo em querer a eles pertencer. Aí surge também a comparação e o tentar fazer o que está ao alcance para poder alcançá-los: mudamos a nossa vida em função de chegar a um padrão que muitas vezes é impossível, investimos tempo, dinheiro, esforço e atenção em tentar chegar a esse “padrão” ou pelo menos aproximarmo-nos dele, e, quando percebemos que não será possível pode surgir a baixa autoestima, a ansiedade, a depressão ou até, muitas vezes, os distúrbios alimentares”. Para Helena Trigueiro, nutricionista, “Existe um grande impacto social, da partilha de boca a boca e da aceitação nas redes sociais e internet - temos uma panóplia de escolhas de dietas absurdas e irresponsáveis disponível através do Google. A forma leviana como falamos da comida e das dietas no espaço digital acaba por não ajudar. Grande parte do nosso dia-a-dia é passado nestes espaços e, portanto, muito daquilo que nos influencia vem de lá. Não existir muita sanidade no digital no que diz respeito à alimentação e à cultura da dieta promove e valida este tipo de sentimentos”.

A par da pressão social assente numa imagem corporal específica perpetuada pelas comunidades digitais, a popularidade de produtos dietéticos e diuréticos já existentes (e a criação de novos) atingiu um novo pico. “Como o Instagram tornou os laxantes fixes”, escreve Gray Chapman, na Elemental, de forma a alertar os leitores da revista médica para as consequências da utilização de laxantes e produtos detox como métodos de perder peso.

A realidade é que novas companhias de chás detox, laxantes e “vitaminas” dietéticas surgiram no mercado, conquistando uma audiência de milhões e colocando a geração millenial como uma das maiores vítimas dos seus produtos. “Podemos começar pelo propósito da coisa: o objetivo da pessoa deve ser aprender a comer de uma forma que a faça feliz, que seja nutricionalmente adequada e que faça sentido. Se esse é o objetivo a longo prazo, é pouco provável que isso seja atingido com solução de “penso rápido”. Dietas líquidas e laxantes não são soluções e criam uma ideia de que a pessoa consegue ser saudável se tiver este tipo de muletas. E essas muletas têm consequências muito graves no que diz respeito ao descontrolo da digestão de lípidos, da desregulação intestinal. Ninguém vai sobreviver com dietas líquidas e ser feliz.”, continua Helena.


Consequências

Diariamente, somos confrontados com novos métodos e técnicas de redução de peso. Quer seja a adoção de uma rotina de exercício radical, a eliminação de hidratos de carbono da nossa alimentação, ou a prática de jejuns e longos períodos sem ingestão de alimentos, todos estes mitos chegam até nós por múltiplas vias. Para Helena Trigueiro, “Ainda há um fosso bastante grande entre práticas responsáveis e aquilo que ainda é tido como normal. De facto, aquilo que se vê muitas vezes são períodos de restrição excessivos e muito acentuados, que depois se transformam em hábitos de vida crónicos. O que acabamos por perceber é que existem pessoas que estão constantemente em restrição, nunca saem de um estilo de vida de dieta, culpa e proibição”, ilustra a nutricionista, antes de acrescentar, “Eu diria que ainda estamos muito desligados daquilo que são as doenças de comportamento alimentar. Não percebemos a prevalência, ainda não estamos capacitados para saber lidar com elas e isso faz com que a procura de tratamento seja mais difícil”.

Em resposta às necessidades dos seus utilizadores e exigências de organizações de saúde, também os responsáveis pelas redes sociais são cada vez mais pressionados a tomar uma posição legal no que toca à promoção e venda de itens dietéticos nas suas plataformas. “Normalizámos a venda do absurdo a públicos de jovens impressionáveis”, comenta a atriz Jameela Jamil, impulsionadora de um movimento que resultou no aumento de restrições à venda de produtos da indústria da perda de peso, implementado pela Meta. Ativistas e associações com relevância no setor classificam essa alteração nas políticas de utilização das plataformas como um passo na direção certa, mas deixam claro que é preciso seguirem-se medidas legislativas nos diferentes países.

Os dados recolhidos pela Associação Nacional da Anorexia Nervosa e Doenças Associadas (ANAD) apontam para que 9% da população mundial sofra de um distúrbio alimentar, sendo que o maior setor demográfico a manifestar sinais destas patologias diz respeito às mulheres jovens. Daniela Mendes realça também que “Não existem propriamente gatilhos que despertem ou façam surgir uma perturbação psicológica relacionada com a aparência física, existem sim fatores que podem contribuir para o desenvolvimento das mesmas (fatores de risco) , vários estudos falam por exemplo na interiorização de ideais socioculturais de beleza, na relação com a comida, na relação de vinculação com a mãe, no bullying, nos ambientes familiares com características como baixa comunicação, no espaço para expressão, na gestão emocional, e nos ambientes autoritários e rígidos”.

Os distúrbios alimentares são, atualmente, as perturbações psicológicas com a taxa de mortalidade mais elevada. A possibilidade tratamento e cura existe, mas fatores como a falta de diagnóstico (ou o diagnóstico tardio) e a pouca informação científica disponível dificultam o processo. “É (um processo) bastante construtivo, muito mais lento, onde acabamos por valorizar as pequenas e grandes conquistas. O papel da nutricionista, em conjunto com outros profissionais de saúde, passa pela visão da pessoa sobre a comida e a forma como ela se alimenta e o quer fazer. Visa a reconciliação com a comida. Essa construção e reabilitação alimentar é o cerne da questão”, confessa Helena Trigueiro, quando questionada sobre os métodos de tratamento.

A prevenção e atenção continua a ser a maior recomendação dos profissionais de saúde, reforçando que, apesar de uma grande variedade de perturbações da alimentação, existem alertas e sinais que devemos ter em mente, estando eles relacionados com os hábitos alimentares, o peso, a imagem corporal e o isolamento social. “Entre comer demasiado num curto período ou evitar comer, alimentar-se com menos do que o corpo precisa, alimentar-se de substâncias que não são alimentares, contar e calcular excessivamente as calorias de cada alimento, dietas rigorosas; Atingir excesso de peso ou um peso muito abaixo do considerado saudável num curto período, preocupação excessiva com o peso, medo de ganhar peso; Preocupação excessiva com a sua aparência/imagem corporal, distorções de imagem corporal – a pessoa vê o seu corpo de forma diferente do que os outros vêm; Oscilações de humor, indução de vómitos, exercício físico excessivo” enumera Daniela.

“Há muito que podemos fazer, tanto por nós mesmos como recorrendo a profissionais, para corrigir a nossa perceção de beleza. Podemos começar, por exemplo, com a psicoeducação sobre o tema, trabalhar o nosso autoconhecimento, a nossa autoestima, a nossa autoaceitação, (…) estabelecer hábitos de autocuidado, trabalhar o nosso discurso interno (o que pensamentos e dizemos a nós próprios) para baixarmos a nossa autocritica pode também ser muito bom, no fundo todos sabemos que temos características muito diferentes uns dos outros e que a beleza é relativa".

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